quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O ADEUS A STAN LEE


                O mundo dos quadrinhos ficou de luto neste mês de novembro. No último dia 12, faleceu aos 95 anos Stanley Martin Lieber, mais conhecido pelo nome artístico de Stan Lee, que nos anos 1960 revolucinou o mercado dos quadrinhos de super-heróis nos Estados Unidos. Lee tinha 95 anos, e já vinha enfrentando problemas de saúde nos últimos tempos. A comunidade internacional de quadrinhos expressou seus pêsames pelo falecimento do profissional, pelo que ele significou para a arte sequencial na segunda metade do século XX.
                Filho de pais judeus imigrantes da Romênia, Stanley nasceu em 28 de dezembro de 1922 em Nova Iorque. Filho de um alfaiate e de uma dona de casa, o futuro profissional da indústria de quadrinhos teve uma infância tranquila, até o advento da Grande Depressão, na década de 1930, quando o pai perdeu o emprego, e a família passou por apertos financeiros. Em 1939, então com 17 anos, o jovem Lieber, por intermédio de um tio, conseguiu um emprego de assistente numa pequena editora comandada da por Martin Goodman, após exercer algumas atividades como lanterninha em cinema, entregador e office boy. A editora se chamava Timely Comics, e entre profissionais que lá trabalhavam, estavam Joe Simon e Jack Kirby, que pouco depois, criariam o primeiro grande fenômeno da editora, o herói patriota Capitão América.
                Trabalhando junto a Simon e Kirby, ainda que este detestasse a presença de Lieber por perto, este começou a mostrar sua inclinação para o mundo dos quadrinhos. Stanley já gostava de escrever, e na então pequena editora, começou a exercer suas primeiras tarefas como roteirista e escritor, adotando então o pseudônimo pelo qual seria eternizado na indústria de quadrinhos. Quando Simon e Kirby deixaram a Timely, por problemas e desentendimentos com Goodman, Lee começou a crescer na editora, ganhando o cargo de editor interino. Dotado de grande senso e oportunidade e carisma para cativar as pessoas ao expor suas idéias, Stan Lee começaria a empregar seus conhecimentos na nova função, adquirindo cada vez mais intimidade com o meio, seus processos e manhas.
                O mercado de quadrinhos nos Estados Unidos passavam por um “boom” com a criação de vários heróis que combatiam os nazistas, a exemplo do Capitão América. Lee chegou a ser convocado, e ao descobrirem seus talentos como escritor, acabou não sendo enviado para os combates. Ao retornar da guerra, assumiu com tudo as funções editoriais na Timely, que nos anos 1950 mudaria de nome para Atlas Comics. E aí, enfrentaria suas primeiras dificuldades na área.
                Com o fim da guerra, o apelo dos super-heróis foi diminuindo, até quase desaparecerem. Lee conseguiu driblar parte destas adversidades começando a produzir na editora histórias de outros gêneros, como faroeste e terror. Infelizmente, devido à paranoia de um psiquiatra chamado Fredric Wertham, os quadrinhos foram acusados de promover a delinquência entre os jovens e denegrir os valores familiares. Diante da crise, Lee teve de demitir boa parte dos funcionários da Atlas, o que lhe valeu vários dissabores entre o pessoal demitido.
                No início dos anos 1960, os quadrinhos de super-heróis começavam a se recuperar, e Martin Goodman, de olho nas vendas alcançadas pela rival National Comics, que viria a se tornar a DC Comics, encomendou a Lee criar novos personagens para aproveitar o momento. Era a oportunidade de Stan Lee mudar os conceitos até então utilizados nas histórias de super-heróis. Lee já andava desgostoso com a profissão havia algum tempo, e com o apoio de sua esposa, resolveu dar vazão às idéias que brotavam em sua cabeça, e que consistia basicamente em tornar os heróis mais verossímeis e humanos. E também falíveis. Até então, os quadrinhos de super-heróis mostravam personagens virtuosos, infalíveis, e que sempre saíam vitoriosos. Seus heróis poderiam até vencer sempre, mas não sem dificuldades, dilemas, problemas pessoais, e inseguranças. Ao lado dos profissionais disponíveis na editora, Lee iria revolucionar para sempre os quadrinhos de super-heróis com estas premissas.
                Junto com Jack Kirby, de volta à editora, Lee concebeu então o primeiro super-grupo da nova era de personagens que viria a formar o Universo Marvel: o Quarteto Fantástico, uma superequipe que, de início, já era diferente de todas as outras por apresentar um esquema familiar. Tínhamos Reed Richards, o líder do time, e gênio científico; sua noiva Susan Storm; seu irmão caçula Johnny Storm; e o melhor amigo de Reed desde os tempos da faculdade, Bem Grimm, piloto de jatos. Transformados por uma exposição a raios cósmicos, o quarteto adquiriu grandes poderes, que passaram a usar na defesa da paz e da justiça, enfrentando as mais variadas ameaças. Mas não sem traumas: Bem se tornou um ser rochoso, de aparência medonha, tornando-se praticamente um pária entre as pessoas normais por causa disso. Reed, por sua vez, culpava-se pelo destino do amigo, por não ter calculado os riscos da viagem que os expôs aos raios cósmicos. E Johnny mostrava toda a impetuosidade e por vezes irresponsabilidade e rebeldia dos adolescentes. Já Susan, por sua vez, tentava se mostrar como uma integrante valorosa do grupo. Foi um sucesso imediato, que seria sucedido por uma legião de novos heróis, concebidos da mente fértil de Lee em parceria com seus colaboradores.
                Da parceria com Steve Ditko, Lee criaria o mais antológico herói da Marvel: o Homem-Aranha, que além de enfrentar supervilões, ainda era hostilizado pelos colegas na escola, e tinha de trabalhar fazendo vários bicos, para ajudar sua tia May, que por um lance de irresponsabilidade de Peter, acabou ficando viúva, promovendo um verdadeiro trauma no jovem, que aprendeu a duras penas que grandes poderes também traziam grandes responsabilidades. Outros heróis se sucederam, como o Incrível Hulk, o Demolidor, Doutor Estranho, Homem de Ferro, X-Men, os Vingadores, o Surfista Prateado, e muitos outros.
                Além de apresentar heróis com defeitos e problemas, Lee revolucionou também por criar uma cronologia nas histórias dos personagens. Eventos que aconteciam em determinado momento eram recordados posteriormente, e também poderiam ter consequências futuras, ou até mesmo nos acontecimentos que ocorriam em títulos de outros heróis. Até então, as histórias de super-heróis publicadas até então eram “estanques”, com raros encontros entre os personagens, e que, mesmo assim, os acontecimentos de determinadas aventuras não tinham desdobramentos posteriores, mesmo entre heróis publicados pela National Comics – futura DC. O grande sucesso de vendas de todos os títulos lançados pela Marvel com o uso deste recurso nas histórias publicadas obrigou os concorrentes a adotar o mesmo tipo de procedimento, além de também começar a deixar seus personagens “menos perfeitos” do que eram mostrados.
                Outra grande inovação de Stan Lee era no contato com os leitores, através de seções de cartas nas várias revistas publicadas, com especial atenção nas respostas, demonstrando respeito com a atenção do público, que começou a se sentir ouvido pela empresa, passando a ter suas opiniões levadas em consideração. Os textos sempre eram feitos em um clima informar e atencioso, com Stan mostrando sua habilidade de comunicação com o público e de cativar aqueles que liam seus textos. Outra sacada em cheio que só aumentou o sucesso de vendas das aventuras da Marvel, que seguia cada vez mais alturas.
                Criar todas estas histórias não era tarefa fácil, mas Lee até conseguia dar conta de tudo. Mas ele não fazia tudo sozinho. Ele traçava as idéias gerais de vários personagens, e das histórias, e deixava para os desenhistas completarem as tramas e adicionar suas colaborações. Os trabalhos então retornavam às mãos de Stan, que finalizava as aventuras, corrigindo o que achasse necessário. Com sua experiência de editor, Stan sabia onde podia tocar os leitores, e com isso, muitas vezes “aparava” as arestas de muitas histórias co-criadas junto com os desenhistas. Isso começou a criar alguns atritos entre eles. Steve Ditko começou a chiar das interferências no modo como o Homem-Aranha deveria ser desenvolvido, e acabou deixando a editora, sendo substituído por Johhn Romita. Mais tarde, Jack Kirby também começou a se queixar destas interferências, quando as mudanças promovidas por Lee começaram a ser demasiadas, na sua opinião.
                Antes de ser escritor e roteirista, Lee também era editor, e sabia melhor do que ninguém que alguns detalhes precisavam ser retrabalhados. Como os roteiros criados por ele eram genéricos em muitos pontos, por não poder escrever a fundo como se deveria, muitos pontos eram criados e finalizados pelos desenhistas. Mas, como chefe deles, Lee precisava verificar o resultado do material, e se necessário, promover acertos e modificações. E, para desgosto de quem não gostava muito destas interferências, Lee estava certo na imensa maioria das vezes. Jack Kirby, por exemplo, ganhou carta branca na DC para desenvolver seus projetos, mas estes nunca fizeram sucesso de vendas na editora, justamente por não haver quem controlasse o resultado das histórias concebidas por Kirby, que podia ser um gigante na arte de desenhar, mas obviamente não tinha o mesmo traquejo como roteirista.
                Nos anos 1970, com a venda da Marvel por Martin Goodman, os novos donos da editora promoveram Stan ao cargo de publisher, e ele ficou encarregado de não apenas administrar os títulos em sua totalidade, como também promover e de divulgar a Marvel nos quatro cantos dos Estados Unidos e até do mundo. E toda esta atividade começou a lhe garantir um cartaz de “grande estrela” da Marvel, acabando por negligenciar a importância dos outros profissionais que, ao lado de Stan, ajudaram a conceber o Universo Marvel. E isso causou outros dissabores, em especial para Kirby e Ditko, que sentiram-se menosprezados e ignorados pelo grande público, como se suas contribuições não existissem. Lee, infelizmente, não tinha muito controle sobre este tipo de percepção que acabou se espalhando entre o público em geral, mas também não fez muita força para corrigir esta situação, pelo menos não como poderia fazer. Gerenciando, divulgando, e promovendo os heróis, que se espalhavam para outras mídias, como TV e desenhos animados, Lee andava cada vez mais ocupado, deixando de vez de escrever histórias.
                Sua promoção como publisher desagradou a Martin Goodman, que esperava que os novos donos da Marvel mantivessem o controle na família, e encarou a nova posição de Stan como traição a tudo o que ele havia feito desde que o então jovem de 17 anos começou a trabalhar para ele em 1939. Sua posição de editor acabou sendo assumida por Roy Thomas, e posteriormente, Jim Shooter, que sentiram como era complicado tocar aquele barco. A favor de Stan, seu grande carisma e instinto sempre o fizeram farejar grandes oportunidades, e fazendo uso destes dons, assim como sua capacidade criativa, muitas vezes ignorada ou negligenciada por muitos, levou o Universo Marvel a se tornar um imenso sucesso, e levar a então pequena Timely Comics, uma editora modesta no final dos anos 1930, a se tornar a gigantesca Marvel Comics nos anos 1970. Paralelamente, Kirby e Ditko chegaram a voltar a trabalhar na Marvel, mas o relacionamento com Lee jamais foi reatado, até o falecimento de ambos, muitos anos depois.
                Com nova mudança de dono da Marvel na segunda metade dos anos 1980, as coisas começaram a mudar também para Stan Lee, que começou a se distanciar da editora a partir dos anos 1990. O entusiasmo já não era o mesmo, e a influência do profissional era cada vez menor na empresa, apesar de ainda ser considerado um mito pela indústria dos quadrinhos. Stan desenvolveu vários projetos pessoais a partir deste período, chegando até a recriar personagens clássicos da DC em novas versões, além de criar alguns novos personagens que foram lançados em mídias diversas. Mas, diferente dos eufóricos anos 1960 e 1970, a criatividade do velho Stan já não era mais a mesma. Mesmo assim, Lee se mantinha ativo como podia, nunca tendo se aposentado do mercado de quadrinhos. E, com o advento das produções de filmes com os heróis da editora, Stan sempre fazia uma “participação especial” em todos os filmes, dando o ar da sua graça.
                Nos últimos anos, o veterano profissional, em virtude da idade, precisou desacelerar suas atividades. No ano passado, ficou viúvo de sua esposa, Joan Lee, com quem vivia desde que se casaram em 1947. Vivendo na Califórnia desde os anos 1980, Stan passou a morar com a filha, Joan Celia.
                Stan Lee pode não ter sido um gênio do desenho como Jack Kirby, ou um roteirista do naipe de Will Eisner, mas suas contribuições e senso de oportunidade produziram mudanças que transformaram a indústria dos quadrinhos de uma forma inimaginável. Muitos criticam que ele não sabia escrever, o que é completamente inverídico, para defender que os desenhistas com quem trabalhou foram em muitos casos os verdadeiros criadores do Universo Marvel de quadrinhos, o que também não é exatamente verdade. Foi uma união de talentos, capitaneada por Lee, que deu origem a esta transformação. Como “rosto público” da Marvel, é verdade que Stan Lee muitas vezes recebeu mais créditos do que deveria, mas daí a dizer que ele se apropriou unicamente do que foi criado pelos outros também é um grande exagero.
                Seus toques sutis, e por vezes até simples, e o senso de negócios e oportunidade que teve chance de conduzir como editor de todas as revistas que produziu, ou co-produziu, transformaram-se em um legado que hoje é reconhecido por toda a indústria de quadrinhos. Por ocasião de seu falecimento, até rivais “históricos” como a própria DC Comics postaram mensagens oficiais lamentando a morte do profissional, em um gesto de respeito ao que ele significou no mercado de quadrinhos no tempo em que esteve à frente da Marvel Comics.
                Descanse em paz, Stan Lee. Você jamais será esquecido por aqueles que são fãs dos quadrinhos.



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