O mundo dos quadrinhos ficou de
luto neste mês de novembro. No último dia 12, faleceu aos 95 anos Stanley
Martin Lieber, mais conhecido pelo nome artístico de Stan Lee, que nos anos
1960 revolucinou o mercado dos quadrinhos de super-heróis nos Estados Unidos.
Lee tinha 95 anos, e já vinha enfrentando problemas de saúde nos últimos
tempos. A comunidade internacional de quadrinhos expressou seus pêsames pelo
falecimento do profissional, pelo que ele significou para a arte sequencial na
segunda metade do século XX.
Filho de pais judeus imigrantes
da Romênia, Stanley nasceu em 28 de dezembro de 1922 em Nova Iorque. Filho
de um alfaiate e de uma dona de casa, o futuro profissional da indústria de
quadrinhos teve uma infância tranquila, até o advento da Grande Depressão, na
década de 1930, quando o pai perdeu o emprego, e a família passou por apertos
financeiros. Em 1939, então com 17 anos, o jovem Lieber, por intermédio de um
tio, conseguiu um emprego de assistente numa pequena editora comandada da por
Martin Goodman, após exercer algumas atividades como lanterninha em cinema,
entregador e office boy. A editora se chamava Timely Comics, e entre
profissionais que lá trabalhavam, estavam Joe Simon e Jack Kirby, que pouco
depois, criariam o primeiro grande fenômeno da editora, o herói patriota
Capitão América.
Trabalhando junto a Simon e
Kirby, ainda que este detestasse a presença de Lieber por perto, este começou a
mostrar sua inclinação para o mundo dos quadrinhos. Stanley já gostava de
escrever, e na então pequena editora, começou a exercer suas primeiras tarefas
como roteirista e escritor, adotando então o pseudônimo pelo qual seria
eternizado na indústria de quadrinhos. Quando Simon e Kirby deixaram a Timely,
por problemas e desentendimentos com Goodman, Lee começou a crescer na editora,
ganhando o cargo de editor interino. Dotado de grande senso e oportunidade e
carisma para cativar as pessoas ao expor suas idéias, Stan Lee começaria a
empregar seus conhecimentos na nova função, adquirindo cada vez mais intimidade
com o meio, seus processos e manhas.
O mercado de quadrinhos nos
Estados Unidos passavam por um “boom” com a criação de vários heróis que
combatiam os nazistas, a exemplo do Capitão América. Lee chegou a ser
convocado, e ao descobrirem seus talentos como escritor, acabou não sendo
enviado para os combates. Ao retornar da guerra, assumiu com tudo as funções
editoriais na Timely, que nos anos 1950 mudaria de nome para Atlas Comics. E
aí, enfrentaria suas primeiras dificuldades na área.
Com
o fim da guerra, o apelo dos super-heróis foi diminuindo, até quase
desaparecerem. Lee conseguiu driblar parte destas adversidades começando a
produzir na editora histórias de outros gêneros, como faroeste e terror. Infelizmente,
devido à paranoia de um psiquiatra chamado Fredric Wertham, os quadrinhos foram
acusados de promover a delinquência entre os jovens e denegrir os valores
familiares. Diante da crise, Lee teve de demitir boa parte dos funcionários da
Atlas, o que lhe valeu vários dissabores entre o pessoal demitido.
No início dos anos 1960, os
quadrinhos de super-heróis começavam a se recuperar, e Martin Goodman, de olho
nas vendas alcançadas pela rival National Comics, que viria a se tornar a DC
Comics, encomendou a Lee criar novos personagens para aproveitar o momento. Era
a oportunidade de Stan Lee mudar os conceitos até então utilizados nas
histórias de super-heróis. Lee já andava desgostoso com a profissão havia algum
tempo, e com o apoio de sua esposa, resolveu dar vazão às idéias que brotavam
em sua cabeça, e que consistia basicamente em tornar os heróis mais verossímeis
e humanos. E também falíveis. Até então, os quadrinhos de super-heróis
mostravam personagens virtuosos, infalíveis, e que sempre saíam vitoriosos. Seus
heróis poderiam até vencer sempre, mas não sem dificuldades, dilemas, problemas
pessoais, e inseguranças. Ao lado dos profissionais disponíveis na editora, Lee
iria revolucionar para sempre os quadrinhos de super-heróis com estas premissas.
Junto com Jack Kirby, de volta à
editora, Lee concebeu então o primeiro super-grupo da nova era de personagens
que viria a formar o Universo Marvel: o Quarteto Fantástico, uma superequipe
que, de início, já era diferente de todas as outras por apresentar um esquema
familiar. Tínhamos Reed Richards, o líder do time, e gênio científico; sua
noiva Susan Storm; seu irmão caçula Johnny Storm; e o melhor amigo de Reed
desde os tempos da faculdade, Bem Grimm, piloto de jatos. Transformados por uma
exposição a raios cósmicos, o quarteto adquiriu grandes poderes, que passaram a
usar na defesa da paz e da justiça, enfrentando as mais variadas ameaças. Mas
não sem traumas: Bem se tornou um ser rochoso, de aparência medonha,
tornando-se praticamente um pária entre as pessoas normais por causa disso.
Reed, por sua vez, culpava-se pelo destino do amigo, por não ter calculado os
riscos da viagem que os expôs aos raios cósmicos. E Johnny mostrava toda a
impetuosidade e por vezes irresponsabilidade e rebeldia dos adolescentes. Já
Susan, por sua vez, tentava se mostrar como uma integrante valorosa do grupo.
Foi um sucesso imediato, que seria sucedido por uma legião de novos heróis,
concebidos da mente fértil de Lee em parceria com seus colaboradores.
Da parceria com Steve
Ditko, Lee criaria o mais antológico herói da Marvel: o Homem-Aranha, que além
de enfrentar supervilões, ainda era hostilizado pelos colegas na escola, e
tinha de trabalhar fazendo vários bicos, para ajudar sua tia May, que por um
lance de irresponsabilidade de Peter, acabou ficando viúva, promovendo um
verdadeiro trauma no jovem, que aprendeu a duras penas que grandes poderes
também traziam grandes responsabilidades. Outros heróis se sucederam, como o
Incrível Hulk, o Demolidor, Doutor Estranho, Homem de Ferro, X-Men, os
Vingadores, o Surfista Prateado, e muitos outros.
Além de apresentar heróis com
defeitos e problemas, Lee revolucionou também por criar uma cronologia nas
histórias dos personagens. Eventos que aconteciam em determinado momento eram
recordados posteriormente, e também poderiam ter consequências futuras, ou até
mesmo nos acontecimentos que ocorriam em títulos de outros heróis. Até então,
as histórias de super-heróis publicadas até então eram “estanques”, com raros
encontros entre os personagens, e que, mesmo assim, os acontecimentos de
determinadas aventuras não tinham desdobramentos posteriores, mesmo entre
heróis publicados pela National Comics – futura DC. O grande sucesso de vendas
de todos os títulos lançados pela Marvel com o uso deste recurso nas histórias
publicadas obrigou os concorrentes a adotar o mesmo tipo de procedimento, além
de também começar a deixar seus personagens “menos perfeitos” do que eram
mostrados.
Outra grande inovação de Stan
Lee era no contato com os leitores, através de seções de cartas nas várias
revistas publicadas, com especial atenção nas respostas, demonstrando respeito
com a atenção do público, que começou a se sentir ouvido pela empresa, passando
a ter suas opiniões levadas em consideração. Os textos sempre eram feitos em um
clima informar e atencioso, com Stan mostrando sua habilidade de comunicação
com o público e de cativar aqueles que liam seus textos. Outra sacada em cheio
que só aumentou o sucesso de vendas das aventuras da Marvel, que seguia cada vez
mais alturas.
Criar todas estas histórias não
era tarefa fácil, mas Lee até conseguia dar conta de tudo. Mas ele não fazia
tudo sozinho. Ele traçava as idéias gerais de vários personagens, e das
histórias, e deixava para os desenhistas completarem as tramas e adicionar suas
colaborações. Os trabalhos então retornavam às mãos de Stan, que finalizava as
aventuras, corrigindo o que achasse necessário. Com sua experiência de editor,
Stan sabia onde podia tocar os leitores, e com isso, muitas vezes “aparava” as
arestas de muitas histórias co-criadas junto com os desenhistas. Isso começou a
criar alguns atritos entre eles. Steve Ditko começou a chiar das interferências
no modo como o Homem-Aranha deveria ser desenvolvido, e acabou deixando a
editora, sendo substituído por Johhn Romita. Mais tarde, Jack Kirby também
começou a se queixar destas interferências, quando as mudanças promovidas por
Lee começaram a ser demasiadas, na sua opinião.
Antes de ser escritor e
roteirista, Lee também era editor, e sabia melhor do que ninguém que alguns
detalhes precisavam ser retrabalhados. Como os roteiros criados por ele eram
genéricos em muitos pontos, por não poder escrever a fundo como se deveria,
muitos pontos eram criados e finalizados pelos desenhistas. Mas, como chefe
deles, Lee precisava verificar o resultado do material, e se necessário,
promover acertos e modificações. E, para desgosto de quem não gostava muito
destas interferências, Lee estava certo na imensa maioria das vezes. Jack
Kirby, por exemplo, ganhou carta branca na DC para desenvolver seus projetos,
mas estes nunca fizeram sucesso de vendas na editora, justamente por não haver
quem controlasse o resultado das histórias concebidas por Kirby, que podia ser um gigante
na arte de desenhar, mas obviamente não tinha o mesmo traquejo como roteirista.
Nos anos 1970, com a
venda da Marvel por Martin Goodman, os novos donos da editora promoveram Stan
ao cargo de publisher, e ele ficou encarregado de não apenas administrar os
títulos em sua totalidade, como também promover e de divulgar a Marvel nos
quatro cantos dos Estados Unidos e até do mundo. E toda esta atividade começou
a lhe garantir um cartaz de “grande estrela” da Marvel, acabando por
negligenciar a importância dos outros profissionais que, ao lado de Stan,
ajudaram a conceber o Universo Marvel. E isso causou outros dissabores, em
especial para Kirby e Ditko, que sentiram-se menosprezados e ignorados pelo
grande público, como se suas contribuições não existissem. Lee, infelizmente,
não tinha muito controle sobre este tipo de percepção que acabou se espalhando
entre o público em geral, mas também não fez muita força para corrigir esta
situação, pelo menos não como poderia fazer. Gerenciando, divulgando, e
promovendo os heróis, que se espalhavam para outras mídias, como TV e desenhos
animados, Lee andava cada vez mais ocupado, deixando de vez de escrever
histórias.
Sua promoção como publisher
desagradou a Martin Goodman, que esperava que os novos donos da Marvel
mantivessem o controle na família, e encarou a nova posição de Stan como
traição a tudo o que ele havia feito desde que o então jovem de 17 anos começou
a trabalhar para ele em 1939. Sua posição de editor acabou sendo assumida por
Roy Thomas, e posteriormente, Jim Shooter, que sentiram como era complicado
tocar aquele barco. A favor de Stan, seu grande carisma e instinto sempre o
fizeram farejar grandes oportunidades, e fazendo uso destes dons, assim como
sua capacidade criativa, muitas vezes ignorada ou negligenciada por muitos,
levou o Universo Marvel a se tornar um imenso sucesso, e levar a então pequena
Timely Comics, uma editora modesta no final dos anos 1930, a se tornar a
gigantesca Marvel Comics nos anos 1970. Paralelamente, Kirby e Ditko chegaram a
voltar a trabalhar na Marvel, mas o relacionamento com Lee jamais foi reatado,
até o falecimento de ambos, muitos anos depois.
Com nova mudança de dono da
Marvel na segunda metade dos anos 1980, as coisas começaram a mudar também para
Stan Lee, que começou a se distanciar da editora a partir dos anos 1990. O
entusiasmo já não era o mesmo, e a influência do profissional era cada vez
menor na empresa, apesar de ainda ser considerado um mito pela indústria dos
quadrinhos. Stan desenvolveu vários projetos pessoais a partir deste período,
chegando até a recriar personagens clássicos da DC em novas versões, além de
criar alguns novos personagens que foram lançados em mídias diversas. Mas,
diferente dos eufóricos anos 1960 e 1970, a criatividade do velho Stan já não
era mais a mesma. Mesmo assim, Lee se mantinha ativo como podia, nunca tendo se
aposentado do mercado de quadrinhos. E, com o advento das produções de filmes
com os heróis da editora, Stan sempre fazia uma “participação especial” em
todos os filmes, dando o ar da sua graça.
Nos últimos anos, o veterano
profissional, em virtude da idade, precisou desacelerar suas atividades. No ano
passado, ficou viúvo de sua esposa, Joan Lee, com quem vivia desde que se
casaram em 1947. Vivendo na Califórnia desde os anos 1980, Stan passou a morar
com a filha, Joan Celia.
Stan Lee pode não ter sido um
gênio do desenho como Jack Kirby, ou um roteirista do naipe de Will Eisner, mas
suas contribuições e senso de oportunidade produziram mudanças que
transformaram a indústria dos quadrinhos de uma forma inimaginável. Muitos
criticam que ele não sabia escrever, o que é completamente inverídico, para
defender que os desenhistas com quem trabalhou foram em muitos casos os
verdadeiros criadores do Universo Marvel de quadrinhos, o que também não é
exatamente verdade. Foi uma união de talentos, capitaneada por Lee, que deu
origem a esta transformação. Como “rosto público” da Marvel, é verdade que Stan
Lee muitas vezes recebeu mais créditos do que deveria, mas daí a dizer que ele
se apropriou unicamente do que foi criado pelos outros também é um grande
exagero.
Seus toques sutis, e por vezes
até simples, e o senso de negócios e oportunidade que teve chance de conduzir
como editor de todas as revistas que produziu, ou co-produziu, transformaram-se
em um legado que hoje é reconhecido por toda a indústria de quadrinhos. Por
ocasião de seu falecimento, até rivais “históricos” como a própria DC Comics
postaram mensagens oficiais lamentando a morte do profissional, em um gesto de
respeito ao que ele significou no mercado de quadrinhos no tempo em que esteve
à frente da Marvel Comics.
Descanse em paz, Stan Lee. Você
jamais será esquecido por aqueles que são fãs dos quadrinhos.
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